sexta-feira, 20 de junho de 2008

Para a vida toda

Hoje de manhã, o Doutor Lourenço chegou ao consultório com o novo bilhete de identidade que foi buscar ao Arquivo de Identificação. Mostrou-me a validade do bilhete e disse:

"Vitalício. Mais uma prova de que não se pode escapar à morte, Teresa, de que os nossos rituais sociais, burocráticos e emocionais vão findar em breve.
Foi a última vez que tirei fotografias de passe fazendo figas para que ficassem condignas, foi a última vez que me pintaram o indicador de negro e mo esborracharam num papel e foi a última vez que me esforcei para fazer uma assinatura apresentável."

Curioso a palavra vitalício provocar em nós a noção de que vamos morrer em breve.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Regresso: Avenida e o Estio

Depois destes dias em Manhattan, preenchidos por conferências inúmeras, eis que me encontro de novo em Lisboa.

Apanho o metro que me leva até à Avenida da Liberdade para cumprimentar a cidade que me provoca reminiscências.

No metro reparo que chegou o Estio. Sentada num lugar afastado da janela, observo múltiplos e repetidos pés pelo chão das carruagens, pés embutidos em chinelos e sandálias. Pés que se esconderam em meias, sapatos e botas durante muito tempo e que têm agora a sua oportunidade de saudar o chão e o mundo.

As cores das roupas são mais vivas e claras e causam confusão ao cérebro que tenta focar a atenção numa camisola apenas e não consegue. Os transeuntes falam mais alto que o habitual quando faz chuva ou frio e os corpos femininos aparecem mais disformes e deformados que o costume.

As barrigas femininas aproveitam o Estio e saem energicamente das calças, ficando suspensas lateralmente. Parecem querer gritar que não mais se sujeitarão à opressão que é ficar por dentro das calças ou por baixo das camisolas sem ver a luz do dia.

Reparei ainda no recente orgulho dos indivíduos no país. Talvez por finalmente fazer sol e estar um clima agradável em Portugal, os indivíduos envergam t-shirts verdes e vermelhas com a inscrição Portugal.

No regresso a Lisboa, o balanço é bastante positivo. Os indivíduos parecem gostar mais do país em que vivem.

domingo, 8 de junho de 2008

A música de uma das minhas pacientes

Há largos meses, em meados de Novembro do último ano, tratei uma paciente da qual terei sempre reminiscências.

No primeiro dia em que nos encontrámos no consultório eram dez e meia, a paciente entrou e pronunciou bom dia com uma voz falsamente grave e encravada na garganta. Arrastou a cadeira para se sentar, tirou cinco flores amarelas que trazia no bolso de trás das calças de ganga, pousou-as em cima da minha secretária e sentou-se finalmente.

Quando lhe perguntei o nome, disse-me que se chamava Maurícia.

De facto, durante as nossas consultas e sessões de psicoterapia, não consegui antever muito cedo qual era a patologia sintomática que afectava esta paciente, pensando eu que apenas se tratasse da necessidade de diálogo com o eu exteriorizada e estruturada através da ajuda do psicólogo.

Foi o Doutor Lourenço que me alertou numa das alturas em que viu a paciente sair do meu consultório:

Doutora Teresa, sem me querer intrometer, pergunto-me o que terá aquela sua paciente. Vejo-a cá tantas vezes...
Sabe, vi-a há pouco e assaltou-me uma reminiscência: ela parece-se muito com um rapazola que vi cantar em Londres há muito anos, quando era jovem. Os óculos, o cabelo, é tudo muito idêntico. Até as geribérias que ela hoje trazia no bolso das calças de ganga. Penso que o rapazola também as usava.

Foi uma pista crucial.
Assim, numa investigação conjunta com o Doutor Lourenço, chegámos à conclusão da sua patologia sintomática: a Maurícia estava convencida que era Morrissey, indivíduo que fora em tempos vocalista de um grupo musical chamado The Smiths. A Maurícia não se chamava Maurícia, chamava-se Cristina.

Graças a esta paciente, descobri um importante grupo musical por mim até então desconhecido.

O tratamento desta paciente consistiu em canalizar a sua necessidade de ser Morrissey para os tempos livres:

De dia a Cristina é ela mesma, mulher activa, individualidade, sendo que definiu o seu auto-conceito com a nossa ajuda.

Quando chega a casa, veste uma camisa larga e umas calças de ganga gastas, tira as flores da jarra na cozinha e coloca-as no bolso de trás das calças. Na casa-de-banho, abre um frasco e ao espelho arranja o cabelo e forma uma poupa alta.
Põe uns óculos grandes e corre com entusiasmo para a sala.

Na sala, liga o microfone e o aparelho de karaoke. Canta e dança, tira as flores do bolso e encanta a plateia que pensa que existe.

Deixo-vos com uma das interpretações da Cristina. Espero que apreciem.

this charming man - mauricia

sábado, 7 de junho de 2008

Conferências reminiscentes em Manhattan


Ontem, após a conferência Contextualizing American Reminiscences in the Nineteen Century, jantei no Bryant Park Grill em Manhattan com o Doutor Phil e outros colegas de profissão dos Estados Unidos. As carnes grelhadas fizeram as delícias de todos.

O Doutor Phil deu uma palestra interessantíssima no âmbito das reminiscências, afirmando que todos os indivíduos presentes na palestra deviam repensar as reminiscências no âmbito de reflectirem sobre o facto de terem comportamentos incorrectos e de serem más pessoas no quotidiano e no passado.

Durante o jantar de ontem no Bryant Park Grill, depois de degustar um pedaço de carne de vaca grelhado acompanhado por duas batatas fritas, Doutor Phil proferiu um raciocínio que anotei rapidamente no meu bloco de notas por representar uma aborgadem importante e original da psicologia em termos do indivíduo e do auto-conceito:

The thing is you are ALL bad persons and your behaviour is really unacepptable. You must think about you as husbands, wifes, daughters, sons, workers, psychologists, lovers, etc. You have to accept the fact that you're behaving badly, is the first thing you have to deal with.
Then, we can support you and help in your recovery as individuals, good individuals.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

"Não te governas só e sabe-lo"

12 de Abril [1947]

Ter a impresão de que cada coisa boa que acontece é um erro feliz, um acaso, um favor imerecido, não nasce de um espírito bom, da humildade e do desprendimento, mas da longa escravidão, da aceitação do arbítrio e da ditadura. Tem-se alma de escravo, não de santo.

Que aos vinte anos, quando os primeiros amigos te deixaram, tenhas sofrido devido a uma nobre dor, é uma das tuas ilusões. Desagrada-te ter de interromper hábitos agradáveis, mais nada. E agora continuas tal e qual.

Estás só e sabe-lo. Nasceste para viver sob as asas de um outro, mantido e justificado por esse outro, mas que seja suficientemente gentil para te deixar à rédea solta e consentir que tenhas a ilusão de que bastas tu sozinho para refazer o mundo. Nunca encontras ninguém capaz de suportar tanto; daqui o teu sofrer por causa das separações - não por ternura. Daqui o teu rancor contra quem se foi embora; daqui a tua felicidade em encontrar um novo dono - não por cordialidade. És uma mulher, e teimoso como todas as mulheres. Mas não te governas só e sabe-lo.

(O Ofício de Viver, Cesare Pavese)


Para si, Doutor Lourenço, a propósito do nosso diálogo de ontem.